Memorial

Sou professora de Língua Portuguesa, Língua Inglesa e suas literaturas. Ainda muito jovem, uma adolescente de 14 anos, ingressei no magistério, porque tinha a certeza de que queria, para minha vida profissional, a sala de aula. Não estava enganada, realizo-me até hoje ao preparar minhas aulas, meus instrumentos de avaliação, ao reorganizar o meu programa, se necessário for, para atender à necessidade de meus alunos, ao participar de congressos e seminários em busca de novos rumos para meu ofício, ao voltar para os bancos acadêmicos em cursos aplicados aos docentes, ao manter com o aluno uma relação de cumplicidade e de desafio. Em algumas ocasiões, fui convidada a trabalhar fora deste universo, mas nunca a ideia me despertou interesse.

Formei-me no magistério em 1991, na Escola Estadual Jornalista Wandick de Freitas, em Taboão da Serra, São Paulo. Durante o magistério meu gosto pela literatura foi mais aguçado, porque foi um momento de muito contato com as obras literárias comuns no vestibular, já que estava às vésperas do exame, mas também com a literatura infantil, sobretudo com Monteiro Lobato e outros escritores universais. Além disso, meu curso de inglês foi concomitante ao curso do Magistério. Tudo isso me fez optar pelo curso de Letras.

Em 1992, passei a fazer parte do corpo discente da Universidade Presbiteriana Mackenzie, época de muitos sonhos e expectativas como estudante, como pessoa e como cidadã. Como estudante porque queria alçar voo na área da educação. Como pessoa, porque acompanhei, durante todo o curso de Letras, a doença de um ente querido. E como cidadã porque vivíamos um cenário político bastante conturbador. Acredito que um memorial precisa ter a história de vida do memoriado, mas também a relação dessa vida com o contexto histórico no qual ele viveu. Não podia deixar de relacionar aqui meu primeiro ano de faculdade ao movimento dos caras-pintadas, em 1992, quando toda minha classe se reuniu na Avenida Paulista e se juntou aos jovens daquela organização estudantil. Momento que me lembrou o grêmio estudantil do qual eu fazia parte, ainda criança, no meu antigo ginásio, na Escola Municipal Ministro Synésio Rocha, no Jd. Umarizal, Campo Limpo, São Paulo.

Na Universidade Mackenzie, tive aulas com grandes nomes que me incutiram gostos ainda maiores pelas letras. Nomes esses que reveria num futuro próximo, quando seguiria a carreira acadêmica.

Em 1995, me formei no curso de Letras e infelizmente, depois de formada, precisei ficar afastada da universidade, porque estive com a minha mãe ainda mais doente. Voltei a estudar em 1999, na Universidade de São Paulo, fazendo um curso de Especialização em Língua Inglesa, de 12 módulos, durante um ano e meio . Tal curso foi fundamental para que adentrasse como professora universitária em uma faculdade, pois foi como professora de inglês técnico para um curso de Gestão Empresarial que eu comecei minha carreira acadêmica, na Faculdade Morumbi Sul. Fiz parte inclusive de um corpo docente que, na época, validou o mesmo curso no MEC.

Em 2001, após a morte da minha mãe, ainda enlutada, mas com uma vontade adormecida de continuar os estudos, voltei à Universidade Mackenzie, no Programa de Mestrado em Comunicação e Letras e, após os exames, fui aceita pela professora Dra. Maria Luiza Guarnieri Atik, na ocasião diretora do curso de Letras. Como sua orientanda, lá fui aluna novamente de Eliza Guimarães, Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos, Marlise Vaz Bridi, Helena Bonito e de Zélia Monteiro Bora. Grande oportunidade para estreitar os laços com todos esses pesquisadores.

Como mestranda tive mais portas abertas no mercado. A proliferação de faculdades, em função da democratização do ensino superior da era Lula, me levou a trabalhar em várias faculdades. Lecionei diversas disciplinas, em vários cursos, na Faculdade Alvorada Plus, Faculdade Morumbi Sul e Faculdade Magister. Mas o curso de Letras sempre foi a menina dos olhos. Acredito que essa variedade de disciplina e de público-alvo acabou temperando minhas habilidades didáticas, pois foi com os meus alunos, sobretudo com meus orientandos de TCC, que ganhei clareza e simplicidade.

Durante todo esse período, refinei o meu estilo de escrita e acho que posso me apresentar como professora de Língua Portuguesa e suas literaturas, sem que isso cause constrangimento naqueles que foram os meus professores.

No início do mestrado, fui bolsista do Mackpesquisa, em seguida, consegui a bolsa pela Capes, o que me levou a fazer parte do Grupo de Pesquisa Literatura no Contexto Pós-Moderno: A ideologia na produção ficcional moderna e contemporânea. Com bolsa, desenvolvi minha dissertação de mestrado com mais tranquilidade, e me utilizei de um corpus que sempre gostei muito, crônicas. Pude usar então minha coleção veiculada na Revista Veja São Paulo e acabei fazendo um recorte de como a cidade era retratada. Minha dissertação Uma leitura da cidade de São Paulo nas crônicas de Ivan Angelo me fez observar como a literatura pode influenciar o leitor e, seguindo a teoria bakhtiniana, verifiquei o outro como centro da palavra, no plano estético, no literário, no artístico, no ético. Com Bakhtin aprendemos que uma compreensão da literatura, mesmo aquela veiculada na mídia jornalística, requer um processo plural, um olhar de diferentes perspectivas.

A literatura está vinculada à sociedade em que se origina, assim como todo tipo de arte, pois o artista não consegue ser indiferente à realidade. As crônicas se relacionavam com a realidade paulistana e observar os aspectos textuais de como a metrópole é retratada no discurso do cronista, me fez refletir sobre perguntas do tipo: O que fazer com a cidade? Qual o destino dela? A preocupação de Ivan Angelo não se restringe a narrar fatos, o escritor está sempre ligado a um tempo, a um espaço, a uma posição diante do mundo. Numa determinada situação, levando em conta seus interlocutores, mesmo se o interlocutor seja ele mesmo. Essa refração também apareceu nas análises.

Quanto terminei o Mestrado, fui aluna especial na Universidade de São Paulo. Fui aluna no departamento de Literatura Portuguesa no primeiro semestre de 2002, na disciplina: Continuidade e Ruptura na Ficção Portuguesa Contemporânea. No ano seguinte, no primeiro semestre de 2004, frequentei o curso de Pós Graduação no departamento de Linguística, cuja disciplina era Toponímia Indígena. E ainda fiz a disciplina Ficção Brasileira e Imprensa no Século XIX, no segundo semestre de 2004. Esta última foi a que mais me encantou, pois consegui unir a literatura e o jornalismo, principalmente porque estávamos em um momento no qual a multiplicidade dos meios de comunicação se tornava cada vez mais presente.

Tantas disciplinas me faziam acreditar que um dia seria aluna na pós-graduação da Universidade de São Paulo, mas como em todos esses momentos, havia uma fila de espera significativa, minha ansiedade não me permitiu que eu esperasse “a fila andar”.

Ingressei então na PUC-SP em 2005 e fui orientanda da professora Dra. Anna Rachel Machado[ii], no LAEL. Lá fui aluna de outros professores que sempre se destacaram na Linguística Aplicada, como Beth Brait, Mara Sophia Zanotto e Tony Berber Sardinha. O último me colocou de alguma forma no caminho da metáfora e colaborou muito com seu parecer na minha tese de doutoramento. Mas, sem dúvida a relação de um orientador com seu orientando é muito forte, íntima e profunda. Anna Rachel Machado foi o meu maior exemplo como professora e como pesquisadora. Muito à frente do seu tempo, foi para mim quem de fato me incutiu metas e me apresentou à vida acadêmica. Com sua rigidez e doçura, apresentou-me uma teoria em constante construção: o Interacionismo sóciodiscursivo. Mesmo na Linguística Aplicada, Anna Rachel Machado me concedeu a oportunidade de não me afastar da literatura e me permitiu continuar com o corpus da literatura, as crônicas, mas dessa vez em outro periódico, a Revista Nova Escola. Foi então com base na teoria do ISD, que defendi a tese: A imagem esfacelada do professor: um estudo em textos de revistas.

Foi no interacionismo sóciodiscursivo que mantive um laço estreito com o pesquisador e teórico Jean Paul-Bronckart, psicólogo da linguagem, da Universidade de Genebra, na Suiça. Para ele, o texto é um meio no qual podemos propagar e criar figuras interpretativas, as crônicas podem assim influenciar o leitor, que constrói re-configurações[iii]. Essa re-configuração nunca é estática e contínua. Numa mesma época, pode-se ter até mesmo uma luta de re-configurações. Um acontecimento histórico pode ser um exemplo deste conflito de representação. Se tomarmos o ataque das torres gêmeas no World Trade Center, nos Estados Unidos, como ilustração, é possível notar que as verdades são as maneiras de perceber as diferentes representações que circulam socialmente. O ponto de vista de um americano é diferente de um iraquiano, ou ainda de um brasileiro.

A escolha do quadro do interacionismo sociodiscursivo liga-se ao fato de que ele nos fornece uma visão clara sobre a linguagem verbal no funcionamento e no desenvolvimento humano. O homem está sempre se expressando, produzindo textos, não importa de qual tipo, oral ou escrito, todos eles podem fornecer uma imagem do agir. A especificidade do Interacionismo sociodiscursivo é que a linguagem é central para ciência do humano. Qualquer fato se constrói nos pré-construídos humanos, por meio da linguagem. Para Jean Paul-Bronckart, é por meio destes textos que temos as representações coletivas, que são historicamente construídas. É somente por meio da manifestação textual, que podemos detectar representações sobre o que somos, o que pensamos e como agimos.

Tal pensamento de certa forma coaduna com o parecer de Bakhtin já que o texto leva o leitor a uma reflexão e até mesmo à mudança de posição perante a realidade, assim a literatura auxilia no processo de transformação social. A literatura também pode assumir formas de crítica à realidade e de denúncia social. Por isso é uma importante fonte histórica. Ela serve para refletir a sociedade, bem como a sua mentalidade. É capaz de construir um cidadão que não é alienado, mas sim consciente de seu papel em seu meio.

Bronckart remete a ideia de que esses textos e / ou discursos é que se apresentam como manifestações empíricas das atividades de linguagem. É por meio deles que se dá a influência da atividade geral na constituição das pessoas e é por meio deles que temos as representações coletivas que são historicamente construídas.

Depois da conclusão do doutoramento, me propus também a dar palestras sobre os temas Literatura; Intertextualidade; Ensino de Língua; Estratégias de Leitura; Estratégias de Leitura nas questões do ENEM; Interacionismo Sociodiscursivo; Português Empresarial; Toponímia Indígena. Também pesquisei como a literatura contemporânea aparece na mídia escrita jornalística brasileira e em exames como os vestibulares e o ENEM, haja visto tanto interesse do adolescente e do jovem pelos best-sellers estrangeiros. Escrevi artigos neste viés, como constam em meu currículo lattes.

A essa trajetória, também se soma meu marido, Edgard Buttler. Com ele, tive uma filha, Júlia Barbosa Buttler, que hoje está com 7 anos, e é minha companheira, como estudante no 2º ano do Ensino Fundamental I, no Colégio Humboldt, Deutsche Schule, instituição bilíngue, em Interlagos, São Paulo, onde atualmente eu trabalho como professora de Língua Portuguesa e suas literaturas nas turmas alemãs.

Lá, faço curso de alemão e estou sempre envolvida em cursos de formação continuada. Vejo o Colégio como a oportunidade de agregar meu conhecimento a minha vida familiar e à realidade da minha filha, já que meu marido pertence à comunidade alemã. Faço tudo com o maior prazer, entretanto sinto que posso contribuir mais com a sociedade e com a academia.

De tudo o que eu vivi, o meu maior aprendizado é que quando termino um estudo, assumo, sempre tenho a impressão de que é agora que preciso recomeçar. Meu sonho é participar de um grupo de pesquisa e trabalhar como professora na mesma instituição. Tive oportunidade de trabalhar como professora em instituições pequenas, mas almejo algo maior, onde eu possa circular por vários cursos, níveis (graduação e pós-graduação) e conhecer diferentes realidades. Onde eu tenha espaço para participar de bancas, orientar Trabalhos de Conclusão de Curso, monitorar aulas EAD, participar de um grupo de pesquisa e dentro desse grupo, contribuir de alguma forma, levando nossos estudos para congressos, colóquios e simpósios. Assim, ser uma das reprodutoras do legado da minha professora, Dra. Anna Rachel Machado, resgatar seu impulso e conseguir unir teoria à prática, assim como ela o fazia. E este espaço, com esta gama de possibilidades, só uma grande universidade pode me oferecer.



Acredito que, após três anos de defesa de uma tese de doutoramento, já tomei fôlego suficiente e está na hora deste recomeço.


A única experiência profissional que mantive com vínculos institucionais fora dos muros escolares e universitários foi na Fundação Faculdade de Medicina, em 1996, onde, por aproximadamente seis meses, atuei como tradutora nos contatos internacionais, no departamento de Importação.

Anna Rachel Machado foi uma grande divulgadora do quadro teórico-metodológico do Interacionismo Sociodiscursivo no Brasil. Faleceu em 20/05/2012.

Re-configuração: Para Bronckart (2007) re-reconfiguração se diferencia do termo representação usado por Serge Moscovici, uma vez que na sociologia estuda-se a representação in loco, observada, mas na literatura e na linguística estuda-se a representação interpretada nos textos.

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